domingo, 20 de maio de 2007

Uma palavra difícil - Maria Rosa Colaço


Conheço trinta e cinco crianças que tentaram aprendê-la em todas as línguas do mundo. Escreviam-na diariamente, antes das aulas; escreviam-na à hora do intervalo, escreviam-na sozinhas.

Foi uma palavra vivida desde a raiz, isto é, desde a simples forma como se desenhavam as letras.
Primeiro, foi um jogo, depois já era uma curiosidade sem fronteiras, mais tarde o orgulho de se saber algo que não era acessível à maioria.

Um dia fizemos com ela um painel do tamanho da parede da sala. Do tecto esvoaçavam pombas de papel, nos armários pombas de barro, com ovinhos de plasticina, transmutavam-se em seres alados que aqueciam os momentos em que o programa a cumprir era mais árido, menos possível o sonho.

No fim do ano escolar, essa palavra tão simples e poderosa era utilizada como legenda e promessa, como fio invisível a ligar crianças de lugares distantes com estas aqui, as que foram as minhas últimas crianças, os meus últimos alunos.

Hoje, nessa tentativa sempre inacabada de deixar os papéis em ordem quando um final do ano se aproxima, encontrei alguns desses textos, lembrei-me dessa experiência. Parecia-me a mim que se essa palavra fosse quotidiana e sem mistérios; se meninos percebessem que em Portugal ela simbolizava o mesmo que na China, na Somália ou na Alemanha, a ideia de mundo e de fraternidade se alargaria. Foi uma experiência. Não resultou. Uma palavra não chega para remover as ambições dos poderosos, para anular o egoísmo dos que mandam, para destruir os tiranos, os medíocres, os indolentes, os oportunistas. Mas, sempre que oiço os noticiários, leio as reportagens, ainda sinto a secreta esperança de que essa pequena palavra, um dia, encha a Terra de abundância, risos e harmonia.

Não posso impedir-me de compartilhá-la consigo, leitor.

Brinque com as suas letras, como os meninos fizeram. Pode escrevê-la de tantos modos! Veja:

Pace Frieden Paix Thun-Lam Amahoro Laffi Filemu Yrede Hedzole Hòa Bính Pokój Khotso Teraoi Kagiso Béke Nabab Paci Mip Diamm Santiphab Mup Baris Salaam Eiphnh Rauha Peace Nutifafa Kagiso Suguru Siochàin Kuthula Nyilale Runyararo Teraoi.

Ou escreva apenas Paz.

Neste tempo de tantos embrulhos, tantos laços, tanta mentira em nome de Jesus, o tal que nasceu nas palhinhas para ensinar a humildade, em vez de gastar o seu dinheiro num cartão de Boas-Festas, igual a todos os outros, escreva com a sua letra, a sua paciência, estas palavras que aí lhe sugiro. E enquanto as escrever, num fim de tarde ou à noite, depois de preencher o totoloto, o totobola, os mil jogos que lhe prometem as riquezas da Terra, pense no que aconteceria se essa palavra se tornasse real, tocável, uma palavra para nós todos.

Deixe-se ser criança só por um bocadinho.

Afinal, Paz é uma palavra tão pequenina, tão clara. Descubra-lhe as sonoridades, pinte-a com a sua caneta azul, enfeite-a de flores, guarde-a depois no olhar, na voz, leve-a para o emprego, para a bicha do autocarro, use-a na lapela.

Vai ver, leitor, que a sua presença será como um pequeno Sol que aquecerá a manhã e, também, já que temos tão pouco em que acreditar, que mal fará se experimentar contagiar com ela os indiferentes, os adultos sem graça com que se cruza todos os dias?

Pode começar! Já!

Maria Rosa Colaço
Não quero ser grande
Lisboa, Editorial Escritor, 1996