domingo, 20 de maio de 2007

Cristo e Pirulito - Jorge Amado


Pirulito é um dos Capitães da Areia, meninos de rua que, nesta história do escritor brasileiro Jorge Amado, escondem os furtos de ocasião num trapiche – armazém grande, junto ao cais. Aí, os conflitos sucedem-se. A solidariedade do padre José Pedro ajuda o rapaz a sentir-se menos cruel. Um dia, numa loja, vê uma imagem do Menino Jesus, solto nos braços da Mãe, e leva esse Cristo com ele, tão pobre um como o Outro.

Pirulito fora a grande conquista do padre José Pedro entre os Capitães da Areia. Tinha fama de ser um dos mais malvados do grupo, contavam dele que uma vez pusera o punhal na garganta de um menino que não queria lhe emprestar dinheiro e o fora enfiando devagarinho, sem tremer, até que o sangue começou a correr e o outro lhe deu tudo que queria. Mas contavam também que outra vez cortou de navalha a Chico Bardia quando o mulato torturava um gato que se aventurara no trapiche atrás dos ratos. No dia que o padre José Pedro começou a falar de Deus, do Céu, de Cristo, da bondade e da piedade, Pirulito começou a mudar. Deus o chamava e ele sentia sua voz poderosa no trapiche. Via Deus nos seus sonhos e ouvia o chamado de Deus de que falava o padre José Pedro. E se voltou de todo para Deus, ouvia a voz de Deus, rezava ante os quadros que o padre lhe dera. No primeiro dia começaram a mofar dele no trapiche. Ele espancou um dos menores, os outros se calaram. No outro dia o padre disse que ele fizera mal, que era preciso sofrer por Deus, e Pirulito então dera a sua navalha quase nova ao menino a que espancara. E não espancara mais nenhum, evitava as brigas e se não evitava os furtos era que aquilo era o meio de vida que eles tinham, não tinham mesmo outro. Pirulito sentia o chamado de Deus, que era intenso, e queria sofrer por Deus. Ajoelhava horas e horas no trapiche, dormia no chão nu, rezava mesmo quando o sono o queria derrubar, fugia das negrinhas que ofereciam o amor na areia quente do cais. Mas então amava Deus-pura-bondade e sofria para pagar o sofrimento que Deus passara na Terra. Depois veio aquela revelação de Deus-justiça (para Pirulito ficou Deus-vingança) e o temor de Deus invadiu o seu coração e se misturou ao amor de Deus. Suas orações foram mais longas, o terror do Inferno se misturava à beleza de Deus. Jejuava dias inteiros e sua face ficou macilenta como a de um anacoreta. Tinha olhos de místico e pensava ver Deus nas noites de sonhos. Por isso conservava seus olhos afastados das nádegas e seios das negrinhas que andavam como que dançando ante os olhos de todos nas ruas pobres da cidade. Sua esperança era um dia ser sacerdote do seu Deus, viver só para a sua contemplação, viver só para ele. A bondade de Deus fazia com que ele esperasse consegui-lo. O temor de Deus vingando-se dos pecados de Pirulito fazia com que ele desesperasse.

E é esse amor e esse temor que fazem Pirulito indeciso ante a vitrina nesta hora de meio-dia, cheia de beleza. O sol é branco e claro, as flores desabrocharam no jardim, vem uma calma e uma paz de todos os lados. Mas mais belo que tudo é a imagem da Conceição com o Menino, que está na prateleira daquela loja de uma só porta. Na vitrina, quadros de santos, livros de orações em encadernações luxuosas, terços de ouro, relicários de prata. Mas dentro, bem na ponta da prateleira, que chega até à porta, a imagem da Virgem da Conceição estende o Menino para Pirulito. Pirulito pensa que a Virgem está a lhe entregar Deus, Deus criança e nu, pobre como Pirulito. O escultor fez o Menino magro e a Virgem triste da magreza do seu Menino, a mostrá-lo aos homens gordos e ricos. Por isso a imagem está ali e não se vende. O Menino, nas imagens, é sempre gordo, um ar de menino rico, um Deus Rico. Ali é um Deus Pobre, um menino pobre, mesmo igual a Pirulito, ainda mais igual àqueles mais novos do grupo, exactamente igual a um de colo, de poucos meses de idade, que ficou abandonado na rua no dia que sua mãe morreu de um ataque quando o levava nos braços, e que João Grande trouxe para o trapiche, onde ficou até o fim da tarde (os meninos vinham e espiavam e riam do Professor e do grande, afobados para arranjar leite e água para o bebé), quando a mãe-de-‑santo Don’Aninha viera e o levara consigo, recostado ao seu seio. Só que aquele era um menino negro e o Menino é branco. No mais a parecença é absoluta. Até uma cara de choro tem o Menino, magro e pobre, nos braços da Virgem. E esta o oferece a Pirulito, aos carinhos de Pirulito, ao amor de Pirulito. Lá fora o dia é lindo, o sol é brando, as flores desabrocham. Só o Menino tem fome e frio neste dia. Pirulito o levará consigo para o trapiche dos Capitães da areia. Rezará para ele, cuidará dele, o alimentará com seu amor. Não vêem que, ao contrário de todas as imagens, ele não está preso nos braços da Virgem, está solto nas suas mãos, ela o está oferecendo ao carinho de Pirulito? Ele dá um passo. Dentro da loja só uma senhorita espera os fregueses, pintando os lábios com uma nova marca de baton. É facílimo levar o Menino. Pirulito estende o pé noutro passo, mas o temor de Deus o assalta. E fica parado, pensando.

Ele tinha jurado a Deus, no seu temor, que só furtaria para comer ou quando fosse uma coisa ordenada pelas leis do grupo, um assalto para o qual fosse indicado por Pedro Bala. Porque ele pensava que trair as leis (nunca tinham sido escritas, mas existiam na consciência de cada um deles) dos Capitães da Areia era um pecado também. E agora ia furtar só para ter o Menino consigo, alimentá-lo com carinho. Era um pecado, não era para comer, nem era para cumprir as leis do grupo. Ia furtar para ter o Menino consigo, alimentá-lo com seu carinho. Era um pecado, não era para comer, para matar o frio. Deus era justo e o castigaria, lhe daria o fogo do Inferno. Suas carnes arderiam, suas mãos que levassem o Menino queimariam durante uma vida que nunca acabava. O Menino era do dono da loja. Mas o dono da loja tinha tantos Meninos, e todos gordos e rosados, não iria sentir falta de um só, e de um magro e friorento! Os outros estavam com o ventre envolto em panos caros, sempre panos azuis, mas de rica fazenda. Este estava totalmente nu, tinha frio no ventre, era magro, nem do escultor tivera carinho. E a Virgem o oferecia a Pirulito, o Menino estava solto nos braços dela... O dono da loja tinha tantos Meninos, tantos... Que falta lhe faria este? Talvez nem se importasse, talvez até se risse quando soubesse que haviam furtado aquele Menino que nunca tinha conseguido vender, que estava solto nos braços da Virgem, diante do qual as beatas, que vinham comprar, diziam horrorizadas:

— Este não... Ele é tão feio, Deus me perdoe... E ainda por cima solto nos braços de Nossa Senhora. Cai no chão e pronto. Esse não...

E o Menino ia ficando. A Virgem o oferecia ao carinho dos que passavam, mas ninguém o queria. As beatas não queriam levá-lo para os seus oratórios, onde havia Meninos calçados de sandálias de ouro, com coroa de ouro na cabeça. Só Pirulito viu que o Menino tinha fome e sede, tinha frio também e quis levá-lo. Mas Pirulito não tinha dinheiro e tão pouco tinha o costume de comprar as coisas. Pirulito podia levá-lo consigo, podia dar ao Menino que comer, que beber, que vestir, tudo tirado do seu amor a Deus. Mas se o fizesse, Deus o castigaria, o fogo do Inferno comeria, durante uma vida que nunca acabava, suas mãos que levassem o Menino. Então Pirulito lembrou-se que só o pensar já era pecado. Que se pecava só de pensar em cometer o pecado. O frade alemão dissera que muitas vezes se estava pecando e nem se sabia, porque estava pecando com o pensamento. Pirulito estava pecando, sentiu que estava pecando, teve medo de Deus e deitou a correr para não continuar a pecar. Mas não correu muito, ficou na esquina, não pôde se afastar para longe da imagem. Olhou outras vitrinas, assim não pecava. Meteu as mãos no bolso (prendia as mãos...), desviou o pensamento. Mas agora os homens que volviam ao trabalho após o almoço passavam na sua frente e um pensamento o assaltou: dentro em pouco os outros empregados da loja voltariam e então seria impossível levar o Menino. Seria impossível... E Pirulito voltou para a frente da loja de objectos religiosos.

Lá estava o Menino e a Virgem o oferecia a Pirulito. Um relógio deu a primeira hora da tarde. Não tardariam a voltar os outros empregados. Quantos seriam? Mesmo que fosse somente um, a loja era tão pequena que ficaria impossível levar o Menino. Parece que é a Virgem que está lhe dizendo isso. Que é a Virgem a lhe dizer que se ele não levar o Menino agora não poderá levar mais, parece que ela está mesmo dizendo isso. E com certeza foi ela, sim, foi ela, quem fez com que a senhorita entrasse pela cortina que tem no fundo da loja e a deixasse sozinha. Sim, foi a Virgem, que agora estende o Menino para Pirulito o quanto podem seus braços e o chama com sua doce voz:

— Leve e cuide dele... Cuide bem...

Pirulito avança. Vê o Inferno, o castigo de Deus, suas mãos e sua cabeça a arder uma vida que nunca acaba. Mas sacode o corpo como que jogando longe a visão, recebe o Menino que a Virgem lhe entrega, o encosta ao peito e desaparece na rua.

Não olha o Menino. Mas sente que agora, encostado ao seu peito, o Menino sorri, não tem mais fome, nem sede, nem frio. Sorri o Menino como sorria o negrinho de poucos meses quando se encontrou no trapiche e viu que João Grande lhe dava leite às colheradas com suas mãos enormes, enquanto o Professor o sustinha encostado ao calor do seu peito. Assim sorri o Menino.

Jorge Amado

Manuela Fonseca e outros (org.)
Lá longe, a paz
Porto, Edições Afrontamento, 2001