domingo, 20 de maio de 2007

O vírus do preconceito

A primeira vez que vi Mustafá foi no hospital onde acabava de fazer o meu trabalho de jornalista: entrevistar pessoas. A guerra terminara há pouco.
Entrou passo a passo na sala de reabilitação. Andava muito devagar, com dificuldade, e parecia bem mais velho do que os seus cinquenta anos.
Sentado em cima de um colchão de espuma, com as costas direitas, começou os exercícios: levantar acima da cabeça pequenos halteres de ferro fundido. O esforço era tão grande que os olhos se lhe enchiam de lágrimas. A respiração ofegante ressoava no silêncio da sala. Ao ver aquelas pernas rígidas e sem vida, como dois pedaços de madeira que faziam ângulo recto com o seu corpo, pensei numa marioneta desarticulada.
Apresentei-me e perguntei-lhe se aceitaria responder às minhas perguntas e dizer-me como tinha ido parar à ala dos deficientes motores do hospital Koševo de Sarajevo.
— Com certeza — respondeu-me a sorrir.
Eis o que me contou:
Antes da guerra, era lixeiro. Quando os bombardeamentos começaram, ficou desempregado. A administração municipal não funcionava e, embora os recipientes do lixo se amontoassem nas ruas da cidade sitiada, ele deixara de ter possibilidades de fazer o seu trabalho. Os combates intensificaram-se, e Mustafá passava a maior parte do seu tempo fechado em casa, com a mulher. Viviam no bairro do aeroporto, perto de uma linha da frente, onde a guerra estalara com uma violência muito particular. Para não arriscarem a vida, só saíam à noite.
Apesar dessas precauções, numa noite de Setembro de 1993, Mustafá foi atingido com uma bala nas costas à entrada do prédio. Tinha sido alvejado por um atirador.
— Tudo estava tão calmo — disse-me ele. — E de repente, pum! Deviam ser duas horas da manhã. O tipo que me fez isto tinha de certeza uma espingarda com infravermelhos. São práticas, permitem ver como em pleno dia. Acertou-me como se eu fosse um coelho, bem no meio das costas...
Voltei várias vezes ao hospital para ver Mustafá. Um dia, como lhe perguntasse o que tencionava fazer agora que a guerra terminara, olhou-me com ar incrédulo. A pergunta parecia-lhe absurda.
— A minha vida ficou estragada — respondeu-me. — A guerra deu cabo de mim.
Falava com uma voz monocórdica, como se fosse uma coisa evidente e não devesse inspirar nenhum tipo de compaixão.
Enquanto conversava com Mustafá, não parava de pensar na bala de espingarda que retirara da parede do meu apartamento. Um dia, de regresso a casa, fui encontrá-la cravada na parede. Por mero acaso não atingira o alvo: é que eu tinha saído. Tratava-se de um pequeno pedaço de metal brilhante e pontiagudo, exactamente igual àquele que se tinha alojado na coluna vertebral do meu interlocutor.
Voltei-me para a janela e olhei o céu cor de cinza. Respirei durante um bom momento e, antes de me virar para ele, retomei o meu ar de jornalista, o meu rosto profissional, como que talhado na pedra. Era todos os dias a mesma coisa: a tristeza das pessoas, a tragédia renovada das suas histórias pessoais. Nas ruas, os prédios conservavam as marcas, as cicatrizes do desastre que acabara de acontecer. E, pouco a pouco, apesar dos meus esforços, a tragédia dos outros infiltrava-se em mim, como por osmose. Os meus colegas ou amigos estrangeiros perguntavam-me com frequência: “Houve algum momento em que tenhas sentido medo?” Algum momento?... Não me lembro de um instante em que não tivesse tido medo. E, em certa medida, ainda hoje tenho.
Porque as perguntas que me fiz a mim próprio durante esta guerra não tinham quase nada a ver com a história da Jugoslávia, nem com a política internacional, que é, no entanto, a minha especialidade. A verdadeira pergunta, aquela que me obcecava, era a seguinte: como pode um ser humano fazer isto a outro ser humano?
Trata-se apenas de uma pergunta, e quem não conheceu o desastre e o horror da guerra poderá julgá-la ingénua. Porém, depois de tudo o que passei, afirmo que esta é a única questão que merece ser colocada.
Não temos necessidade de ler livros ou relatos sobre a história dos Balcãs para compreender o que se passou na Bósnia. Não temos necessidade de falar bósnio ou servo-croata. Basta, por exemplo, pensarmos em Mustafá e perguntarmo-nos: “Como é possível que, numa noite de Setembro, um atirador furtivo o tivesse atingido com uma bala nas costas?”
A resposta dá-se numa palavra: preconceito.
O preconceito, aquela paixão cega que pode transformar qualquer um de nós num assassino, é uma doença social que existe provavelmente desde a origem das sociedades. Será necessário enumerar as suas terríveis consequências? Os campos de concentração nazis, o genocídio dos arménios, as violências étnicas no Ruanda, a violência religiosa na Índia, na Irlanda, na Indonésia, a violência urbana diária nos Estados Unidos.
Por toda a parte, seres humanos massacram outros seres humanos sob o pretexto de que a língua destes, a cor da pele, a religião, são diferentes das suas. E os homens políticos bem podem proclamar “Nunca mais”, que o mal sempre regressa. Desta vez, na Bósnia. Este país – o meu país – fica doravante a fazer parte da lista daquelas regiões “malditas”, marcadas pelas devastações da guerra.
Vejo o preconceito como um vírus mortal que ameaça infectar todos os cérebros humanos deste planeta. O funcionamento do vírus é simples: precisa de um organismo onde possa desenvolver-se, e também precisa de vítimas.
Na Bósnia, as vítimas foram inumeráveis. O meu amigo Davor, por exemplo. Era estudante de medicina dentária quando o “vírus do preconceito” o atingiu. Era um bósnio croata, de religião católica. A família dele, tal como a minha, estava implantada em Sarajevo há quinhentos anos. A 8 de Outubro de 1994, soldados bósnio-sérvios dispararam tiros de metralhadora contra um eléctrico cheio de civis. Houve dois mortos e sete feridos, entre os quais Davor. Uma bala atravessou-lhe o braço direito, deixando-o paralisado e marcado com uma horrorosa cicatriz púrpura.
— Não percebi que estava ferido até ao momento em que vi a minha mão cheia de sangue — contava-me Davor. — E sabes uma coisa? Pior do que a dor, tinha uma pergunta a martelar-me a cabeça: porque é que eles me fizeram aquilo? Não estava no exército. Nem sequer os conhecia.
Ao evocarmos o fim da guerra, a “protecção” que a NATO tinha decidido conceder-nos, baixou a voz:
— Não tenho confiança nesta paz. Quero ir-me embora. Os meus pais recusam exilar-se, dizem que a nossa família se estabeleceu em Sarajevo há já muito tempo. Mas eu vou partir. Quero recomeçar a minha vida longe de tudo isto.
Não disse nada a Davor, mas perguntei-me se seria de facto possível encontrar uma terra prometida onde escapar ao “vírus do preconceito”. Recordo-me bem demais das minhas viagens ao estrangeiro. Daquele amigo australiano instalado em Londres, que me dizia: – Se vir um negro pôr um pé no meu relvado, dou-lhe um tiro. Ou daquela cena que testemunhei numa rua de Toulouse: dois rapazitos negros a perseguirem uma jovem, chamando-lhe branca mal-cheirosa... Por toda a Europa, a linguagem está contaminada pelo preconceito. Há o “negro”, a “mal-cheirosa”, o “judeu”, o “árabe nojento” ou o “chinoca”.
Antes da guerra, costumava encolher os ombros quando ouvia esta linguagem injuriosa. Dizia para comigo que as coisas eram assim mesmo, que muitas vezes as palavras ultrapassavam o pensamento, mas que, pelo menos na Europa, a situação nunca poderia degenerar. Mas pôde. Chegou até nós, na Bósnia, e também àquela pequena região que, não há muito, fazia parte do meu país: o Kosovo.
A guerra dos preconceitos faz vítimas em todo o lado. Deixa atrás de si feridos, estropiados para o resto da vida, e deixa também aqueles a quem se dá o nome de “refugiados”, um termo que se vulgarizou, e é usado para descrever o drama das pessoas que nunca mais poderão voltar para casa.
Lembro-me de Sandra, aquela jovem habitante de Sarajevo, de origem sérvia, que recusava todos os nacionalismos. Durante a guerra, os pais tinham deixado o apartamento deles no centro da cidade para se refugiarem no bairro de Grbavica, dominado pelo exército bósnio-sérvio, na esperança de escaparem às balas e aos obuses. Parece que estou a vê-la naqueles últimos dias de guerra, a tremer dentro de um velho casaco do exército, à espera de ser revistada pelos militares, para entrar no centro de Sarajevo e visitar os amigos do liceu que não via há três anos. Mal sabia o que o futuro lhe reservava. A família não podia ir viver para a Sérvia: sem dinheiro, sem parentes que os acolhessem, estavam condenados à errância.
— Hoje em dia, em Grbavica, as pessoas estão com medo — dizia-me. — Sentem-se ameaçadas. Não acreditam que o governo muçulmano vá protegê-‑las. Toda a gente está a fugir para as montanhas... Não sei o que fazer.
No dia seguinte, soube da notícia: os residentes sérvios de Grbavica tinham sido atacados por milícias sérvias nacionalistas, que lhes ordenaram que deixassem a cidade antes do governo bósnio voltar a tomar posse daquele bairro. Incendiavam os apartamentos e, sob a ameaça das armas, forçavam, uma vez mais, as famílias a exilar-se. O preconceito, nascido do medo e do pretexto de defender os interesses de um determinado grupo, estava a virar-se contra os seus próprios princípios! Nacionalistas sérvios destruíam casas sérvias e agrediam cidadãos sérvios para os “proteger”... de quê, na verdade? Do mal que lhes poderia fazer um governo de predominância muçulmana?
Julgo que aquele momento foi um summum de estupidez no meio de toda aquela loucura assassina...
Ainda hoje, a paisagem conserva as marcas: casas demolidas, aldeias inteiras riscadas do mapa, terras até há pouco cultivadas e de ora em diante desertas, campos fantasmas, infra-estruturas destruídas... O nosso país ficou mutilado como um ferido de guerra. Foi destruído, não por um ciclone ou um tremor de terra, mas pelo ódio dos homens.
E não consigo deixar de pensar em Mustafá.
Não tinha ligações políticas. Apesar da sua origem muçulmana, e tal como muitos muçulmanos da Bósnia, nem praticante era. Era apenas um lixeiro da Jugoslávia socialista que, depois da Bósnia ter proclamado a sua independência, estava prestes a ser um lixeiro da República da Bósnia.
Mas, um belo dia, um atirador cego pelo preconceito, transtornado pela ideia de que a identidade ou a fé do outro pudessem ameaçar a sua causa nacionalista, fez bascular o destino. Empunhou a arma, disparou e transformou Mustafá num enfermo.
No momento em que escrevo estas linhas, Mustafá deve estar a dormir na sua cama de hospital. Acordará amanhã de manhã, para fazer, como todos os dias, os seus dolorosos exercícios de reeducação. Mas, apesar de todos os esforços, nunca mais voltará a andar. Ficou paralítico para toda a vida.
Outra vítima de uma nação, mais uma, atingida pelo vírus do preconceito.
S. K.
Traduzido do inglês por Marianne Costa.
Atelier Post-Scriptum
Une guerre en Europe
Paris, Hachette Jeunesse, 1999