domingo, 20 de maio de 2007

Cantiga do fogo e da guerra - Sérgio Godinho

Há um fogo enorme no jardim da guerra
E os homens semeiam agulhas na terra
Os homens passeiam co’os pés no carvão
que os deuses acendem luzindo um tição

P’ra apagar o fogo vêm embaixadores
trazendo no peito água e extintores
Extinguem as vidas dos que caem na rede
e dão água aos mortos que já não têm sede

Ao circo da guerra chegam piromagos
abrem grande a boca quando são bem pagos
Soltam labaredas pela boca cariada
fogo que não arde nem queima nem nada

Senhores importantes fazem piqueniques
churrascam o frango no ardor dos despiques
Engolem sangria dos sangues fanados
e enxugam os beiços na pele dos queimados

É guerra de trapos, do pulmão que cessa
do óleo cansado que arde depressa
Os homens maciços cavam-se por dentro
e o fogo penetra, vai direito ao centro.


Sérgio Godinho


Manuela Fonseca e outros (org.)
Lá longe, a paz
Porto, Edições Afrontamento, 2001