domingo, 20 de maio de 2007

Um taco de bilhar - António Marques Leal


Antes de chegar à Farmácia, onde algumas vezes pedi: – um frasquinho de anis, se faz favor – para a pesca, passamos pela porta da Filarmónica que encostava, paredes meias, com os Bombeiros. No primeiro andar, havia o salão de jogos. Foi lá que, um dia, assisti à queda de um taco de bilhar.

Ao domingo, a manhã começava tarde e algo agitada com os preparativos para ir à missa. Quando na véspera tínhamos assistido à que se realizava na capela do velho Hospital, então a manhã era aproveitada para pôr o estudo em dia e esperar pelo almoço que, por ser domingo, era geralmente melhorado. O cozido à portuguesa foi um dos pratos mais concorridos da casa dos meus pais. Todos os seus condimentos eram, meticulosamente, partidos em pequeníssimos bocados e, depois de regados com o caldo do cozido, os fragmentos eram todos misturados para serem apreciados numa amálgama de cheiros e sabores. Em cada garfada, havia o treino mental suficiente para subdividir toda aquela mistura em elementos solitários, degustando um por um como quem consegue descrever todos as características de um vinho, ao provar apenas um gole.

Depois da refeição, esperava-se, calmamente, a vinda das três da tarde, hora a que abria a Filarmónica, pelas mãos do senhor António Louceiro, instalada num primeiro andar que se alcançava através de umas velhas escadas contíguas à oficina do meu avô. À entrada, um amplo salão albergava uma mesa de ping-pong, uns matrecos, um snooker e um bilhar livre. Com vinte e cinco tostões dava para jogar quase toda a tarde, em todas as modalidades.

Ao lado deste salão, estava a sala da televisão, local muito concorrido a partir das quatro, para ver o filme das tardes de domingo. O aparelho, um dos poucos na terra, estava encavalitado em cima duma mesa bem alta e, à sua frente, dispunham-se seis ou sete filas de bancos de madeira corridos, que rapidamente se enchiam de gente ávida de desfrutar da película. Nessa hora, fazia-se um silêncio sepulcral, apenas entrecortado pelos berros da malta que jogava matrecos, especialmente quando uma habilidade do Tó Claves enganava, mais uma vez, o guarda-redes adversário. Vinha logo à porta da sala da televisão o senhor António, o manda-chuva das instalações, baixinho e anafado, fazendo parar a algazarra com o seu olhar de respeito, para que o filme, lá dentro, pudesse decorrer com normalidade.
Numa dessas tardes, alguns dos mais velhos, que eu já não via há alguns anos, e de quem quase tinha esquecido os rostos, perdurando tão-somente os seus nomes, vieram ao salão, para uma partidinha de bilhar livre.

Lembro-me deles, cada um com o seu modo, mas ambos como que querendo esquecer o inferno vivido em paragens distantes, a defender terras que não eram as suas, sentindo o cheiro da morte em cada dia que passava no além- mar.

Mesmo em frente ao salão da Filarmónica, vivia a mãe de um que se tinha esquecido de apanhar o barco de volta. Tinha sido atingido por uma bala, que impediu os seus olhos de continuar a ver as cores, os cheiros e os ruídos da vida. Na mesinha de cabeceira daquela mãe ficou uma fotografia, a preto e branco, do seu, para sempre, querido Camané.

Os tiques de um e a enganadora calma do outro pareciam querer dizer que a vida tinha recomeçado no dia em que desembarcaram do navio militar (era importante esquecer).

A partida de bilhar decorria com o silêncio que ninguém dispensava, quando se pegava naqueles tacos. Ouvia-se, de quando em vez, o deslizar do marcador de jogadas e um ou outro suspiro, antes de uma nova tacada. O barulho do giz, na ponta do taco, era dos ruídos que mais me incomodavam, por causa da semelhança com o ranger dos dentes, depois de se comer uma laranja. Felizmente, esses momentos eram curtos e raros.

Um dos jogadores teve, entretanto, necessidade de ir à casa de banho e, aproveitando o pequeno intervalo, alguém se lembrou de ligar o rádio para saber os últimos resultados da jornada de futebol.

O taco, agora sem dono, foi encostado à beira da mesa de jogo, aguardando o seu reinício.

Quando o jogador regressou, a porta bateu com força e a corrente de ar criou uma onda de choque que fez deslizar o taco. Os meus olhos acompanhavam o seu trajecto lento, que levaria à sua inevitável queda, no sobrado do primeiro andar.

Fez-se um estrondo e, num golpe mergulhante, vi o jogador deitar-se debaixo da mesa do bilhar, apertando a cabeça entre as mãos e quedando-se naquela posição fetal que muitos de nós gostamos de fazer, quando estamos no descanso do sono da noite.

Passaram-se vários minutos de um silêncio apenas interrompido por gemidos roucos vindo de debaixo da mesa do bilhar.

Só depois, o jogador concluiu que não se tinha tratado de um tiro e muito menos de uma granada. Fora, tão simplesmente, a queda de um taco, o seu taco, aquele que ele tinha encostado à mesa, enquanto foi à casa de banho.

Não foram necessárias palavras ou explicações.

Todos compreenderam como aquela guerra tinha sido dura para eles e como havia de ser dura para nós, os mais novos, mal chegasse a nossa hora de marchar.

Estávamos a quatro ou cinco anos de Abril.

António Marques Leal
Estórias sem história
Lisboa, Padrões Culturais Editora, 2003