domingo, 20 de maio de 2007

O noivo - Bisera Alikadić



Oito escritores da ex-Jugoslávia e oito escritores dos Países-‑Baixos e da Bélgica travaram relações de amizade entre si e em conjunto escrevem contos e poemas. O noivo conta a história de um rapaz que foge com a mãe da guerra na Bósnia.

Se vivesse num país devastado a ferro e fogo, não conseguiria compreender que uma história me entrasse assim, sem mais nem menos, pela janela do meu quarto. Como uma espécie de visão vinda de um outro mundo. Ficaria com certeza espantado. Talvez já nem me lembrasse que existiam outros países, e pensasse apenas na minha própria terra. Por isso esta minha história tem de ser uma boa história.

Alem andava no segundo ano do primeiro ciclo quando a guerra começou, não começou assim simplesmente, mas rebentou – e quando a guerra rebenta, ela dispara tiros para todo o lado, para pessoas e edifícios, incendeia casas e árvores e envenena a água. A guerra leva as pessoas a defenderem-se da melhor maneira que puderem. Leva-as a fugirem, a esconderem-se, a gritarem. Faz com que pessoas morram antes de ter chegado para elas a altura própria.

No abrigo subterrâneo a tia Biba deitava por vezes as cartas à luz da candeia, porque a guerra também faz com que falhe a luz eléctrica. Todos queriam que Biba visse nas cartas se continuariam a viver.

Não sou Deus! — dizia-lhes Biba. — Não é isso que quero ver para vocês nas cartas. E só hei-de deitá-las àqueles que estão interessados no amor. Cada um de vocês tem de me dizer com franqueza o que quer saber. Mas tem de dizer respeito ao amor ou à paixão, claro.

Era isto que Biba dizia. Todos os que vinham vê-la para que lhes adivinhasse o futuro diziam que queriam saber isto ou aquilo... mas a verdade é que só pensavam se eles próprios ou os que lhes eram queridos sobreviveriam à guerra.

Alem pediu a Biba que indagasse se ele seria feliz quando casasse, e se a sua futura mulher ia ser linda.

Biba olhou para ele e disse:

— Ora vejam-me bem como isto anda, então tu não sabes que idade tens? Ainda és um catraio e já pensas em casar!

— Por favor, tia Biba — disse Alem — gostava tanto de saber! Gostava tanto de ter uma mulher bonita!

— Está bem, meu filho — suspirou Biba, e começou a deitar as cartas. Alem arregalou muito os olhos e observava as cartas como se também fosse muito entendido nessas coisas.

— A tua mãe há-de achar uma rapariga bonita para ti e há-de arranjar o vosso casamento. Vais viver para o estrangeiro. Hás-de ter uma data de filhos — disse-lhe Biba.

Alem exultou de felicidade. E todos no abrigo subterrâneo se riram dele.

Nesse instante, decidiu no seu foro interior: Eu hei-de um dia ter filhos, ora isso quer portanto dizer que vou ser adulto. E que continuo a viver.

— Vou sobreviver. Hei-de continuar a viver. E a jogar futebol...

A partir de então passaram a chamar-lhe o noivo.

A mãe metia-se com ele:

— Ora olhem bem para este meu noivo...

Alguns dias mais tarde faleceu o seu avô. Ia de bicicleta, quando uma mina explodiu perto dele. O choque foi tal que o fez cair da bicicleta. Em redor do seu corpo sem vida acharam batatas, que trazia para os netos num cesto.

Quando a mãe de Alem soube disso, tomou a decisão de fugir com os filhos daquele inferno. Porque a guerra é o inferno aqui na terra.

Por vezes, a mãe deixava Alem e o seu irmão Amir sozinhos no abrigo. Ia então de repartição em repartição pedir autorização para sair do país com os filhos e ir para um lugar onde não matassem pessoas.

Nessas alturas, Alem e Amir ficavam o tempo todo de orelhas arrebitadas à espera. E perguntavam-se a si mesmos se a mãe já teria conseguido arranjar alguma coisa. Imploravam a Deus que ela não fosse atingida por uma bala. Passados uns meses receberam os papéis para partirem para o estrangeiro. Foram de camioneta. Ouviam-se disparos de tiros e explodiam bombas. Depois cessaram os tiros. Estavam em território livre. Continuaram a viagem, cansados e ensonados.

De repente, apareceu algo de resplandecente: uma princesa muito, muito alta veio ter com Alem. Era tão bela como a sua mãe. Retirou a mão que até então mantivera sob o véu branco e transparente, e acariciou-lhe o cabelo.

— Tu vais ser o meu favorito. Aqui tens uma bola dourada. Vamos fazer uma equipa completa para ti com os melhores jogadores. Vocês vão jogar desafios de futebol em todos os estádios do mundo. E hão-de ganhar sempre.

— Mas, princesa, eu prefiro uma bola normal, uma igual àquela com que o meu amigo Mário e eu jogávamos tantas vezes. Até chegámos a jogar no apartamento dele, havia lá na parede um quadro com a figura de Jesus, e então eu olhava para o quadro e tinha medo que déssemos cabo de alguma coisa. Mário piscava-me o olho, a mim e a Jesus. Mário morreu quando a mãe ia com ele ao médico para uma consulta. Ele andava com muita tosse. Dá-lhe de novo a vida, princesa. Foi com ele que mais gostei de brincar.

Alem olhou para o céu, onde, lentamente, um grande tapete voador se punha em marcha. Estava a abarrotar de gente.

— Quem são vocês? — perguntou-lhes quando reparou que ele próprio também estava a voar.

— Somos os habitantes de uma cidade sitiada. Da tua cidade.

Alem olhou com mais atenção, e viu no outro extremo o seu amigo Mário, sentado...

— Alem, Alem — era a mãe a chamá-lo. Tinham de mudar de camioneta. Tinham de atravessar mais uma ou outra fronteira...

Bisera Alikadić

Manuela Fonseca e outros (org.)
Lá longe, a paz
Porto, Edições Afrontamento, 2001