domingo, 20 de maio de 2007

Despacha-te

— Despacha-te — disse a minha mãe enquanto abria as portadas do meu quarto. — São oito horas!
Bolas! Estava a ter um sonho maravilhoso.
Sobre quê? Já não me lembro bem.
Este despertar sobressaltado apagara da minha memória as imagens idílicas. Estava tão bem…Estava no mar… Ah! Havia um grande veleiro branco.
Enfiei a cabeça nos cobertores e fechei os olhos, numa tentativa de encontrar a continuação deste filme fantástico. Era capitão de uma escuna que vogava rumo a terras maravilhosas, cheias de sol; terras onde as crianças brincam, pescam e nadam de manhã à noite… Mais alguns segundos e gritaria aos meus marinheiros: “ Preparar para atracar!”
— Éric, despacha-te! — insistiu a minha mãe, metendo a cabeça pela porta do meu quarto.
Abri os olhos, espreguicei-me, bocejei, pus um pé no chão, depois outro. Tudo isto muito devagar, para não ter de abandonar os mares do Sul depressa demais. Maquinalmente, enfiei os braços no roupão e dirigi-me à cozinha para tomar o pequeno-almoço. O meu olhar fixava ainda as palmeiras ao longe.
Dentro da minha tigela, o café com leite esperava-me.
Peguei nas torradas e mergulhei-as no líquido odorífero. Observei as crateras que se formavam à superfície, e que se aproximavam ou afastavam conforme os movimentos do meu pulso. Pus-me depois a imaginar os primeiros passos de um astronauta no seu café-lua. Cortei em seguida o pão em pequenos barcos, que fiz voltear com a minha colher, como se um ciclone os tivesse apanhado. Vagas enormes e castanhas submergiam o pão e transbordavam da tigela.
Tendo decidido que não haveria sobreviventes, engoli, uma a uma, as minhas embarcações.
Neste mesmo instante, uma abelha aventurou-se a explorar a compoteira. Com a boca cheia e uma colher em riste, observei-a, imóvel, enquanto ela se deleitava com o açúcar tingido de morango que escorria pelo bocal de vidro abaixo.
Detestava os insectos que picavam, que rastejavam, que zumbiam. O avô tinha-me ensinado que as abelhas só atacam se forem provocadas, mas eu não me sentia muito seguro.
Nem mexi uma sobrancelha.
Tudo me assustava.
Os insectos, os cães, as tempestades, os ruídos, uma sombra a mexer-se na parede, um rumorejar de folhas no bosque.
Estava em permanente alerta.
É claro que se fosse mais espadaúdo, teria menos medo.
Os corpulentos não têm medo de nada.
— Éric, já acabaste? — perguntou a minha mãe. — Despacha-te!
Apanhado em falta, fiz um gesto brusco e a abelha escapuliu-se pela janela.
Uf!
Molhei os lábios na bebida e fiz uma careta: já estava fria, como todas as manhãs.
A natureza inteira conspirava contra mim e fazia-me demorar. Um dia, uma mosca veio alisar as asas no rebordo da mesa e pôs-se a tricotar com as patinhas da frente. Que espectáculo! Um outro dia, um bando de pardais obrigou-me a levantar para arbitrar uma disputa entre eles. Tudo me chamava a atenção, fosse a cerejeira em flor que, na Primavera, agitava as mangas brancas por detrás da vidraça, ou o sol, que luzia cores de fogo, ouro, rosa e malva por detrás da colina de Prahines. Eu tinha todas as desculpas possíveis para não me poder despachar.
A culpa não era minha. Era preciso procurar outro culpado.
Não era que eu não me quisesse despachar: a verdade é que não sabia.
Para mim, rápido e lento não eram antónimos mas antes sinónimos (uma palavra nova que aprendi este ano, nas aulas). Eu não andava “devagar”. Andava como andava, sem poder ir mais depressa, já que não me dava conta de que ia devagar.
O tempo é o que é. Escoa-se sempre ao mesmo ritmo e eu vivo ao ritmo do tempo.
Ninguém diz à Terra:" “Anda mais depressa”, mesmo quando queremos que o Inverno passe depressa. Ninguém diz à árvore: “Cresce mais depressa”, mesmo se queremos colher as cerejas no ano em que as plantamos. Porquê condenarmo-nos a andar depressa?
O meu espírito funcionava assim: sempre que me vinha uma ideia, os meus gestos detinham-se.
Por exemplo: uma manhã, a minha luva, cheia de espuma untuosa, já tinha passeado por metade da minha cara (sem todavia ter descido até ao pescoço, esforço especial que reservava só para os domingos) quando, subitamente, me pus a pensar nas férias. Centenas de projectos eclodiram na minha cabeça, impedindo a luva de se passear pela outra metade da cara. Estava a duzentos quilómetros da casa de banho, a construir uma cabana de ramos com o avô Ernest, que sugeria que atapetássemos o chão com folhas e que fizéssemos uma chaminé para o caso de querermos assar castanhas, quando a minha mãe gritou:
— Despacha-te!
A bola de sabão do meu sonho estourou e enxaguei o sabão-chantilly que ornamentava uma das faces, sem ter lavado a outra.
Um minuto depois, ao colocar o dentífrico na escova, veio-me uma canção aos lábios.
Ora, não é possível lavar os dentes e assobiar ao mesmo tempo.
Estão a ver, a culpa não é minha!
Se esta melodia não me tivesse entrado na cabeça, tinha lavado os dentes em cinco minutos. Mas um refrão aprisionado na cabeça não se sente feliz e tive de lhe dar livre curso.
A minha mão direita esperava que ele fosse embora para poder escovar os minúsculos dentes de leite, evitar os buracos deixados pelos que haviam já desaparecido, e aflorar o dente grande que emergia da gengiva.
— Despacha-te! — repetiu a minha mãe.
Nem me penteei. Também não era preciso: era impossível domar a espiga que se erguia no cimo da minha cabeça.
Para me “despachar”, corri para o quarto para me vestir. De gatas, procurei as peúgas debaixo da cama, da cómoda ou do armário. Debaixo deste, descobri o berlinde que pensava ter perdido.
Que boa surpresa!
Mirei-o e remirei-o para admirar a cor.
Juro que já não me lembrava do seu reflexo azul tão vivo.
Além do mais, este berlinde dava-me sorte. Ia pô-lo na pasta, quando a minha mãe ralhou:
— Éric, não é possível! Fazes de propósito! Ainda nem sequer estás vestido!
Não, não estava a fazer de propósito.
Os elementos conspiravam contra mim.
Era culpa minha se, naquele preciso momento, tinha encontrado o meu berlinde caprichoso?
E enfim, entre as oito e as oito e meia, decorrem trinta pequenos minutos que têm um prazer malicioso em se escoar a toda a velocidade, enquanto que, durante as aulas de matemática, esses mesmos minutos se colam uns aos outros, contando e recontando os seus sessenta segundos.
Para evitar um novo sermão, tentei acelerar os movimentos, o que deu um péssimo resultado.
Meti os dois pés na mesma perna da calça, abotoei a camisa ao contrário, enfiei o pulover de trás para a frente.
Enervei-me, praguejei, enfureci-me.
Andar depressa faz-me perder tempo e obriga-me a recomeçar tudo duas ou três vezes. Se fizesse tudo no meu ritmo, conseguia à primeira.
Não há pressa!
Pus-me diante do espelho e ensaiei algumas caretas destinadas a impressionar alguns gandulas que as faziam bem piores. Mas, mesmo esticando os lábios, alisando o nariz, ou fazendo um olho estrábico, não consegui um ar feroz. Tentei piscar os olhos, gesto às vezes útil nas aulas, mas só conseguia fechar os dois ao mesmo tempo.
Finalmente, enfiei o blusão e beijei a minha mãe, que me empurrou dizendo:
— Despacha-te!
Desatei a correr. Depois, caminhei pelo passeio fora, a olhar em frente. De repente, sem querer, o meu passo abrandou, e tornei-me sonhador e ocioso à medida que me afastava de casa.
Comecei a respirar melhor.
Todo o meu ser se distendia.
O meu olhar ia de uma árvore em flor para uma nuvem estranha no céu. Parei para acariciar com a mão um carro estacionado e um gato a fazer a sua higiene junto de um portão.
Relaxava no espaço-tempo que era finalmente meu.
De repente, pareceu-me ouvir: “Despacha-te!”
Virei-me. Não havia ninguém.
Suspirei e desatei a correr, com a pasta a balouçar nas minhas costas.


Anne-Marie Desplat-Duc
Le Minus
Toulouse, Éditions Milan, 2002
tradução e adaptação