domingo, 20 de maio de 2007

Um gole de água - Aida Ademović


A expressão “beber um gole” designa uma actividade mecânica e comum que leva cerca de quinze segundos. E, quando se trata de água, não se pensa mais nela do que no ar que se respira. No entanto, naquele ano de 1992 em que a guerra rebentou, quiseram os acontecimentos que este simples gesto se tornasse consideravelmente mais difícil para os habitantes de Sarajevo.

A cidade, situada num vale, viu-se, um belo dia, cercada e sitiada. Os atacantes tinham decidido cortar todos os abastecimentos de gás, electricidade e água. Por quatro anos seguidos, deixaram Sarajevo sob um dilúvio incessante de ferro e de fogo. Atiradores emboscados controlavam todos os cruzamentos visíveis a partir das colinas, e os obuses caíam vinte e quatro horas por dia, arrebatando vidas e semeando a morte, o que, com o passar do tempo, se tornou algo de quotidiano e de totalmente banal. Os bombardeamentos foram tão violentos durante os quatro anos de cerco que os habitantes da cidade se habituaram a dizer: “Há um obus destinado a cada um de nós, é só uma questão de tempo.”

Sitiada, sem luz, sem água, sem aquecimento, quase sem alimentos, mas debaixo de tiros incessantes, a cidade ficou em breve reduzida a um buraco negro, separada do mundo, entregue a si própria e constatando esporadicamente, à luz das explosões intermitentes, que ainda se encontrava viva.

Mas, no fundo desse buraco negro, a luta pela vida, ou melhor, pela sobrevivência, era tão impiedosa, encarniçada e inexorável como aquele dilúvio de ferro e fogo. Os alimentos entravam a conta-gotas pelo túnel cavado sob a pista do aeroporto, única saída para o mundo exterior. Mais tarde, quando o aeroporto foi reaberto, a distribuição da ajuda humanitária recomeçou... Mas, mesmo nessa altura, nunca corremos o perigo de engordar. As pessoas utilizavam o menor torrão de terra, mesmo nas varandas e peitoris das janelas cobertas de floreiras, para ao menos plantarem alguns legumes. Cada qual se desenvencilhava conforme podia. Era preciso habituarmo-nos a viver sem gás e sem electricidade. Claro, não é muito agradável tactear na escuridão. As pessoas não são morcegos. Mas a falta de água é uma calamidade à qual ninguém pode habituar-se.

Arranjar água tinha-se tornado um problema crucial naquela luta pela vida. Os atacantes controlavam quase todos os recursos de Sarajevo em matéria de água, e metade da cidade ficara limitada a abastecer-se em cerca de quarenta torneiras, o que era muito pouco para cento e cinquenta mil habitantes.

Que trabalhos para “beber um gole” naqueles anos de 92–95! Esse gesto, anteriormente banal, exigia agora uma boa dose de coragem, força, tenacidade, paciência e imaginação, e também muita sorte e tempo! Mas tínhamos tanto tempo que nem sabíamos o que fazer com ele! Dir-se-ia que estava suspenso sobre as nossas cabeças.

Para “beber um gole” era preciso, em primeiro lugar, que o dia estivesse calmo, isto é, que não houvesse lançamento de obuses nem de granadas. O que não queria dizer que se estivesse completamente em segurança, porque as hostilidades podiam recomeçar a qualquer momento. Mas era preciso decidirmo-nos, porque a sede não espera. Levávamos, por vezes, cinco horas para percorrermos os dois, três ou quatro quilómetros que separavam o nosso domicílio do ponto de distribuição da água, onde cada qual vinha recolher algumas gotas de vida.

Era preciso também arranjar recipientes vazios para a água. Os mais práticos eram os garrafões, os bidões e os tonéis. Havia-os de todas as formas e tamanhos. É evidente que, uma vez cheios, não era muito cómodo levá-los às costas ou nos braços durante vários quilómetros. A força e a resistência humanas têm, apesar de tudo, os seus limites. Era necessário, portanto, inventar um meio de transporte não motorizado, porque, naquela época, não havia gasolina suficiente nem para encher um dedal. Foi assim que se lembraram da roda, aquela preciosa invenção locomotora da espécie humana. No Inverno, o veículo mais eficaz era o trenó, pelo menos para quem o possuía. Mas os mais afortunados eram os donos de uma bicicleta, e isto por várias razões. Primeiro, em cima de uma bicicleta, pode-se transportar uma grande quantidade de água; em seguida, percorre-se mais rapidamente a distância entre a torneira e a casa (e vice-versa), de tal forma que é possível ir e vir várias vezes por dia. E quanto mais depressa se atravessar os cruzamentos “vigiados” pelos atiradores furtivos, menos risco de vida se corre.

Os donos de carrinhos de mão também conseguiam desenvencilhar-se: claro, o meio de transporte é mais lento e a sua capacidade menor, mas o que interessa é que ande! Quem não tivesse bicicleta nem carreta era obrigado a arranjar rodas para fazer à mão um transporte improvisado. Se alguém tivesse dificuldade de as arranjar, podia sempre recorrer à imaginação: é possível, de facto, fabricar-se rodízios a partir de diversos materiais. À falta disso, restavam as mãos, as costas e as pernas, o que não era nada recomendável, porque o destino de um ser humano comum, obrigado a carregar diariamente grandes quantidades de água, é pouco invejável, sem contar com o facto de que uma bala é sempre mais rápida do que um peão.

Por conseguinte, munido atempadamente de garrafões, tonéis, veículos com rodízios e bons músculos, o indivíduo X, uma vez chegado à torneira, tem ainda de pôr à prova a sua paciência de anjo e os seus nervos de aço. Estarmos na fila uma hora ou duas, quando não três, nada tem de agradável. Sobretudo se essa fila é constituída por um conjunto de pessoas tão extenuadas, enervadas e febris como nós. E, claro, é impossível fazermos fila com a nossa preciosa bicicleta ou carreta. Deixamo-la em qualquer lugar por perto, juntamo-nos à multidão febril, e esperamos, esperamos pacientemente. Depois de nos termos enfadado várias horas, enchido os recipientes com o precioso líquido, e se, entretanto, nenhum obus nos tiver caído em cima, estamos prontos para regressar a casa a toda a velocidade, contanto que, bem entendido, ninguém nos tenha roubado o nosso meio de transporte.

Quando, finalmente, entramos em casa a são e salvo, toda a família se apressa a matar a sede. E eis que surgem novas solicitações: um banho, uma barrela, uma refeição a preparar... A necessidade de água é constante!

Mal se teve tempo de descansar depois daquele trabalho esgotante e já os recipientes começam a alinhar-se diante da porta. Vazios. É preciso recomeçar tudo.

A bem dizer, ao fim de quatro anos de repetição forçada, tudo isto acaba por tornar-se uma actividade mecânica e banal. É preciso que se saiba que, para “beber um gole de água”, cada habitante de Sarajevo investiu em média, no decurso dos quatro anos que durou a guerra, quatro mil trezentas e oitenta horas, isto é, cerca de cento e oitenta e dois dias completos.


Aida Ademović

Traduzido do bósnio (servo-croata) por Marianne Costa, com a colaboração da autora.



Atelier Post-Scriptum
Une guerre en Europe
Paris, Hachette Jeunesse, 1999
tradução e adaptação