domingo, 20 de maio de 2007

A Guerra e o Irmão - Irmela Wendt


Quando a Guerra
alcançara já
uma idade avançada,

– ela sempre existira,
diziam as pessoas –

os poderosos do mundo recearam
que um dia ela pudesse acabar.

Juntaram-se
amigos e inimigos,
e planearam uns com os outros
o que seria de fazer.

Bem diferentes eram
as suas ideias,
mas num ponto concordaram:

sem Guerra não podia ser!

Após semanas atarefadas
de infindáveis conversas
e desconversas,
decidiram tudo fazer
para evitar

a morte da Guerra.

Daí em diante,
quando se falasse da Guerra,
ninguém poderia aludir
à sua idade avançada.
Seria retirada de todos os livros
e substituída
pelas honrosas palavras
“tradição gloriosa”.

Com as mais modernas armas
seria equipada.
Para tal, nem dinheiro nem esforços
se deveria poupar.

Às intenções seguiram-se os actos.

Os cavalos que até agora
puxavam os canhões para a batalha
foram substituídos por motores.

Os soldados que até agora
usavam armas simples,
foram munidos de metralhadoras.

A Guerra, que até agora
se travava em terra e na água
passou a travar-se também no ar.

Do céu caía fogo.
Bombas explodiam.
Aviões de guerra assobiavam em voo picado.
Aviões de baixo voo espalhavam terror e morte.
De um continente a outro,
mísseis sulcavam o céu
em direcção ao alvo.

A Guerra crescia em eficiência.
Ninguém mais estava a salvo dela,
nem mesmo os que ficavam em casa:
as mulheres com os filhos pequenos
e as pessoas de idade.

E como os poderosos não paravam
de modernizar a Guerra
foram inventados aviões cada vez mais rápidos
e eficientes bombas e mísseis.

O que muito agradava à Guerra.

Ela empenhava-se na grande corrida.
Porém, onde estaria a meta?

Bombas tinha ela que chegassem
para o globo inteiro
envenenar
e destruir.

Uma embriaguês apoderou-se dela,
Um enorme desejo a seduzia…

Mas…onde estaria ela
quando a terradeixasse de existir?
Pela primeira vez, ao fim de milhares de anos,
a Guerra
sentiu pena
de ser a Guerra.

Gostaria
de ter sido uma outra pessoa.
E perpassou-lhe a estranha ideia
De, efectivamente, já ter sido
uma outra pessoa.

Mas, por mais que cogitasse
não conseguia lembrar-se
de quem tinha sido.

Tirou férias.
Deixou o relógio do tempo andar para trás
e para trás deixou
os mísseis,
as bombas,
os aviões de combate,
os tanques,
as metralhadoras,
os motores.

Montou de novo num cavalo
e, através dos séculos,
percorreu cidades cercadas, e burgos
armados com catapultas.

Usou escudo e lança,
espada e armadura.
E quando, a correr, atravessou os séculos
e não encontrou mais fábricas de armas,
nem oficinas de ferreiro,
quando nem ferro nem aço tinham sido ainda descobertos,
atirou com seta e arco
e com as mãos pedra lançou.

E continuava a não saber
quem na verdade fora
antes de Guerra ser.

Certa vez,
a partir de um pedaço duro de madeira,
começou a talhar
uma moca
com um sílex aguçado.
E, ao levantar os olhos do trabalho,
viu, a pouca distância,
um homem
que parecia observá-la.

Nunca a Guerra tivera
medo de ninguém.
Contudo agora atravessava-a um calafrio
muito semelhante ao medo.

“Quem és tu?”, perguntou a Guerra.

O desconhecido não respondeu.

Mas aproximou-se.

“Quem és tu?”,
perguntou novamente a Guerra.

“Quem és tu?”,
perguntou o desconhecido.

Soou como um simples eco,
e a Guerra assustou-se com aquela voz.

Deixou cair pedra e moca
e levantou-se
com os joelhos vacilantes.

O desconhecido
estava agora tão próximo
que cada um sentia
a respiração do outro.

“Quem és tu?”,
perguntou a Guerra pela terceira vez.

“Quem tu foste!”,
respondeu o outro.

“Mas o teu nome?”,
perguntou em voz baixa a Guerra.
“Não me lembro do teu nome…”

Mas o outro calou-se.

E atravessaram a charneca,
um ao lado do outro,
e nem uma palavra lhes saiu dos lábios.

Suspensa no ar, a névoa
roçava nas ervas,
nas flores,
e, quando se dissipou,
viu que jazia ali um homem
e o seu sangue
tinha tingido
de vermelho
a terra
e a erva
e as flores.

“Abel! Meu irmão!”,
gritou a Guerra.
Caiu de joelhos.
Já não era a Guerra;
era – aquele que ela já tinha sido –
era irmão,
era Caim.
Não mais um desconhecido.

Lágrimas
não choradas durante séculos
tombaram como chuva
e limparam todo o sangue.

E o irmão Abel levantou-se.

Juntaram lenha miúda,
deitaram ramos por cima
e fizeram uma fogueira.
Apanharam grãos
e toda a espécie de frutos doces.
À beira das brasas
prepararam
uma refeição
que juntos comeram.

E Caim contou
o que viveu
em companhia dos poderosos do mundo.

Abel respondeu:
“Naquele tempo, quando tudo começou,
cada um estava sozinho junto da sua fogueira.
Se tivéssemos feito juntos as nossas oferendas,
Caim, meu irmão,
de certeza que não me terias matado.
E, assim, tudo
o que a seguir aconteceu
não teria acontecido no mundo.

Por isso, quero ir junto dos poderosos
e pedir-lhes
que se ajudem uns aos outros,
em vez de se destruírem
e matarem.”

Muito tempo
esperaram
os poderosos
pelo regresso da Guerra.
Por fim, pensaram
que a velha devia
ter morrido.

Quiseram prestar-lhe a última homenagem
e encomendaram uma enorme urna
de mil homens de comprimento
e trezentos e setenta e cinco de altura
e toda em aço
e no centro do campo de treinos
a colocaram.

Encheram a urna
com todas as coisas
que haviam sido mais queridas à Guerra:
tanques
e aviões de combate
e canhões
e mísseis
e metralhadoras,
os uniformes mais sumptuosos,
com todo o tipo de ordens e de medalhas de mérito,
e tudo a desfazer-se
para que coubessem muitas coisas.

De todos os países
vieram armas
e a urna começou a afundar-se com o peso,
a afundar-se cada vez mais,
e acabaram de encher a cova
com o ferro-velho que sobrara.

Depois, começou a marcha fúnebre.
Muito à frente caminhavam os poderosos,
aqueles que governam,
e os generais,
que faziam os planos de guerra,
e os donos das fábricas,
que faziam e vendiam armas,
todos em silêncio
e com o desgosto estampado na cara.
Depois deles, o povo,
e isto era engraçado de se ver.

Na cauda do cortejo, as pessoas aglomeravam-se
à volta de um homem
que dizia chamar-se “irmão”
e que contava
como a Guerra se tinha libertado.




Irmela Wendt
Der Krieg und sein Bruder
Düsseldorf, Patmos-Verlag, 1991
Texto adaptado