domingo, 20 de maio de 2007

Foge, Élie! - Élisabeth Brami



Para a Liane Krochmal, comboio 71.
Para a Liliane,
Para o Pierre,
Para o Philippe,
que nunca cresceram verdadeiramente.

Para todas as crianças escondidas
e aquelas que não tiveram a sorte
de o ser.


Saímos sem fechar a porta à chave.
A mamã chorava.
Era uma manhã de Junho, mesmo antes do fim das aulas.
Eu estava a jogar às damas com bocadinhos de pão, nos quadrados do oleado da cozinha.
O Sr. Perrier, o nosso vizinho que era polícia, veio bater à porta.
Sussurrou qualquer coisa ao meu pai.
Escutei: «Ralph… Yves».
Não conhecia ninguém com esses nomes.
O meu nome é Élie.
A mamã fez-me meter algumas roupas à pressa na pasta. Meti também o livro de Robinson Crusoé que tinham acabado de dar-me quando fiz sete anos.
— Vamos esconder-te no campo e depois vimos buscar-te.
— Depois de quê?
Tive de enfiar o sobretudo por cima da camisa cinzenta. Era quase Verão, estava quente. Percebi que era para que não vissem a estrela amarela que a mamã tinha pregado no dia 9 de Junho, o dia do meu aniversário.
Depois fomos a pé até à estação. Não apanhámos o autocarro. Logo que o comboio saiu de Paris, colei o nariz aos vidros para contar as vacas nos campos.
O papá apertava os dentes. A mamã fungava.
À chegada perguntámos onde era a quinta do Sr. François. No final de um caminho, vimo-lo apoiado num portão ferrugento. Tirou uma beata amarelada da boca.
Não cheirava nada bem.
Eu não queria ficar ali. O papá pôs a mão no meu ombro. A mamã acariciou-me os cabelos:
— Vai ser como nas férias — disse-me ao ouvido.
Engoli as lágrimas.
Vi uma mulher que empurrava um carrinho de mão ao longo do pântano, e coelhos e patos, como no livro de leitura da escola.
Disfarçadamente, o papá entregou um envelope ao Sr. François.
Antes de partir, a mamã ajoelhou-se diante de mim.
Enquanto falava comigo, estava sempre a levantar a gola do meu sobretudo como se eu tivesse frio.
— Ouve bem, Élie. A partir de agora chamas-te Émile. Émile, estás a ouvir? E o Sr. e a Sra. François vão ser os teus tio e tia. É preciso que te portes bem. Nós voltamos.
Vi-os partir na curva do caminho. Com a pasta às costas, eu já desistira de me mexer.
A Sra. François fez-me entrar em casa. À minha frente, na longa mesa, pousou uma tigela de leite quente. Tinha nata, mas eu não disse nada. A mamã já não estava ali para ma tirar.
Uma mosca esticava as patas na toalha pegajosa. Vi que aqui não ia poder jogar às damas por causa dos horrorosos desenhos de raminhos de flores.
Mais tarde, subi ao sótão para me deitar. Ninguém me deu um beijo de boa noite. Tinha medo. Chorei durante muito tempo. Por fim, abracei-me ao livro do Robinson e adormeci.
Os cobertores picavam.
Tive um pesadelo. Estava numa ilha deserta. O Sexta-Feira vinha atrás de mim para me matar e eu corria em volta de um pântano lodoso.
De manhã fui acordado por gritos:
— Émile! Émile!
Lembrei-me que era eu. Tinha aulas.
O professor fez logo troça de mim diante dos outros por causa da minha pronúncia parisiense. Depois, fizemos um ditado.
Dei tantos erros que tive de enfiar as orelhas de burro até aos olhos, e a minha folha de ditado foi arrancada e pregada com um alfinete na minha camisa. Quase no mesmo sítio da estrela que a Sra. François tinha descosido a resmungar:
— Este ainda nos vai levar a todos para a prisão!
Nos dias seguintes, fiquei de castigo, sem recreio. Tive de copiar cem vezes:
— Não se escreve “Tens deportar-te bem”; escreve-se “Tens de portar-te bem.”
Em Paris, eu era o primeiro da turma e a minha caneta nunca esborratava.
Depois, chegaram as férias grandes. O papá e a mamã não vieram buscar-me. Durante todo o Verão, dei de beber aos animais e aprendi a levar as vacas até ao prado. A Capucine era a minha preferida. Contava-lhe tudo. Ela tinha um focinho branco e cor-de-rosa, quente e doce. Doce como o Totor, o meu urso, que deixei ficar em Paris.
Tinha lido o Robinson todo e já não tinha medo do Sexta-Feira. Mas, quando regressei às aulas, ainda tinha medo do professor.
Mas tinha sobretudo medo de uma coisa: que fizessem mal ao papá e à mamã, que eles nunca mais pudessem vir buscar-me, que se esquecessem do lugar onde me tinham escondido, que não me reconhecessem porque eu tinha crescido muito.
Até tentei deixar de comer para parar de crescer, mas não consegui. Tinha muita fome. Os François diziam-me sempre que eu comia por quatro, que não tinha sido um bom negócio e que veriam o que fazer porque o envelope em breve ficaria vazio. Riam-se.
Um dia, disseram que a França estava cortada em duas. Noutro dia, também falaram de Ralph e de Yves. Eu rodava a manivela do moinho de café a fingir que era o comboio.
E, depois, deixou de haver café.
Voltou o Inverno. Tinha-me habituado a lavar-me na bomba. A água gelada esguichava na banca de pedra. Havia água quente na torneira do fogão a lenha, mas era reservada para o grande banho de domingo, antes da missa.
Para fazer chichi e o resto, era preciso ir lá fora, para cima do esterco, atrás do celeiro.
— E que ninguém te veja! — avisara-me o Sr. François. — Despachado como tu és, ainda nos levas a todos presos…
Mas ele não se preocupava nada.
Ao ver o meu espanto, a Sra. François acrescentou:
— É como com a estrela, quando chegaste cá a casa; tem a ver com a guerra…
Não percebia nada. Ainda não tinha feito oito anos.
Foi nessa altura que me apercebi que a velha vizinha dos François me andava a espiar. Aproveitava para o fazer enquanto lavava os bidões de leite antes da ordenha.
Um dia, fez-me sinal com o dedo adunco para que me aproximasse da cancela.
— Então, menino, esqueceram-se de ti na arrecadação? Os teus pais perderam a tua morada? Nem toda a gente a perdeu… Vais ver o que te espera!
Fugi a correr, cheio de medo. Tinha percebido que ela queria cortar-me qualquer coisa, mas não sabia o quê…
À noite, chamei pela mamã e pelo papá no meu colchão de palha. Só o Tommy, um cão da aldeia, me fez uma visita.
Um dia, vi a Mariette, a neta dela, que parecia má como uma bruxa. Tinha um canivete na mão. Pensei que tinha sido mandada pela avó para me matar, mas ela só queria brincar comigo. Achei-a bonita, com o seu laço vermelho nos cabelos.
Talvez estivesse escondida como eu e não pudesse dizê-lo. Talvez pertencesse à família deles e fosse simpática.
Decidimos brincar os dois.
No entanto, na aldeia, nunca nos tínhamos falado.
Construímos uma cabana. As paredes estavam atapetadas com jornais. A mesa era feita com toros de madeira, a cama com ramos.
Brincámos aos casamentos. Eu era o seu rei, ela a minha rainha.
Fizemos coroas. Mariette era um pouco maior do que eu, mas assegurava-me que não fazia mal, que nos casaríamos para sempre quando tivéssemos idade e a guerra acabasse.
Eu disse que sim. Tinha acabado de fazer oito anos.
Depois veio um Verão e um outro Inverno. A Mariette e eu brincávamos sempre juntos.
Em Abril, ela disse-me que tinha um segredo. Mas que não tinha o direito de mo contar por causa da avó.
— Eu também tenho um grande segredo.
Tinha muita vontade de lhe contar tudo: o falso Émile, a estrela amarela cosida e descosida, os François e o envelope, e os meus pais que me tinham abandonado havia já dois anos.
Nessa quarta-feira tínhamos decidido brincar aos casamentos-quase-de-verdade na igreja, depois da escola. Tinha posto à Mariette uma coroa de papoilas. Entrámos dando as mãos. Numa mancha de luz vimos a avó a rezar. Levantou a cabeça e pregou os dois olhos no meio da minha fronte.
Depressa, a Mariette puxou-me para fora. Ria como uma louca e tinha vontade de fazer chichi.
— Também eu — disse-lhe. Fomos para trás da igreja. Ríamos, eu de pé, ela agachada.
De repente, olhou-me com um ar estranho. Levantou-se, puxou as cuecas e, a tartamudear qualquer coisa, partiu como uma flecha deixando-me sozinho. Apertei a carcela e fui para casa.
Depois do jantar e da louça, voltei a sair, enquanto os François ouviam as notícias na rádio.
Perto da cavalariça, por detrás do trigo, vi a mãe da Mariette a estender a roupa. Pedi para a ver e a mãe pôs-se a gritar:
— Não há mais Mariette! Acabou-se a Mariette! Chispa daqui! E não te chegues a ela, senão…
Fez um gesto com as mãos como se estivesse a degolar um frango.
— Ala! Como os teus pais! Como os da tua laia!
As molas caíram na relva. Corri para bem longe.
A noite caiu. Corri até mais não poder. Não queria voltar à quinta. Queria encontrar o papá e a mamã. Naquele instante.
Perto da estação, passei ao lado da casa grande, aquela onde diziam que havia todo o ano uma espécie de colónia de férias para crianças. O Tommy, o cão deles, apareceu. Tinha-me encolhido nos arbustos. Ele lambeu-me os braços e as pernas.
Eu estava todo arranhado.
Fui acordado por dois camiões.
Era de manhã.
No fosso onde me encontrava, vi tudo: os polícias e os soldados alemães com as suas armas.
Não me mexi nem respirei. Era óbvio que me vinham buscar. Alguém de casa da Mariette deveria ter-me denunciado, ou então, tinham sido os François, por causa do envelope que estava vazio.
Os ramos do pilriteiro estavam a arranhar-me.
Mas os polícias apontaram para a casa grande e entraram pelo terraço com os soldados. De espingarda em punho, fizeram sair todas as crianças em pijama, mesmo as mais pequeninas, que choravam. Atiraram-nas para os camiões, amontoaram-nas aos gritos de Schnell! Schnell!

Ouvi gritar:
— Liane, Liane, volta!
Foi então que vi a pequena, esbaforida por ter atravessado o prado. Quando me viu, teve medo. De pé, por detrás do arame farpado, permanecia imóvel.
— Salta! — disse-lhe. — Chamo-me Élie.
Nesse momento chegou o Tommy, todo contente, a uivar. Pensava que estávamos a jogar às escondidas. Não queria calar-se.
— Anda, salta, Liane!
— Não consigo. Foge, Élie!
Não tive tempo de a ajudar. O barulho das botas aproximou-se.
— Não, o miúdo não — disse o polícia. — É o Émile, o sobrinho dos François. É da aldeia.
Então, o soldado pegou na pequena pelo braço. A Liane gritava, não queria, defendia-se com todas as suas pequenas forças.
— Tu, volta para a quinta. Mexe-te — mandou o polícia.
Alguns minutos mais tarde, os dois camiões cheios de crianças passaram por mim na descida. Deixaram uma nuvem de pó. Ouviam-se choros e cânticos através das coberturas fechadas dos camiões.
Sei que a Liane desapareceu para sempre no grande ventre da guerra. Partiram todos. Sim, sei-o. Compreendo. Estou quase a fazer nove anos.
Continuo à espera.
Será que a mamã virá coser-me uma estrela nova para o meu aniversário?

Élisabeth Brami; Bernard Jeunet
Sauve-toi Élie !
Paris, Seuil Jeunesse, 2003